Era uma tarde de sábado bem ensolarada. Da cozinha da casa de minha madrinha de batismo, ouço, de forma distraída, uma música religiosa que sua filha Bruna escutava na sala. Bruna é daquelas garotinhas de coração piedosíssimo, sinto-me pagão ao lado dela.
Travávamos conversas, minha madrinha e eu. Enquanto isso, a música penetrava meus ouvidos sem meu consentimento. Francamente, a sua melodia pouco ou nada me agradava, assim como as demais canções daquele disco religioso. Contudo — entre uma conversa, piadas e gargalhadas que brotavam da cozinha — senti-me atraído por uma frase que era dita enquanto a canção seguia instrumentalmente: “a saudade é uma pessoa”, falava uma voz masculina saída daquele aparelho sonoro. Flagrei-me compungido. “A saudade é uma pessoa, a saudade é uma pessoa, a saudade é...” repetia, como um eco, para mim mesmo em meu interior.
De súbito, pularam, como lebres e rãs, inúmeras pessoas que havia conhecido nesta minha curta vida. Emergiram em minhas lembranças em forma de saudades. Estas pessoas estavam vivinhas dentro de mim, sabia que eram reais, contudo não eram mais presentes. Pena!
“A saudade é uma pessoa”!
Há pessoas que amamos que se vão de nossas vidas. Sei lá, o acaso as levam com toda a autoridade que recebeu não sei de quem. De mim não recebeu, jamais permitiria. Há outras que até sabemos por onde perambulam. Em suma, todas vão, mas sem ir. Ficam em algum cantinho de nossa alma guardadinhas, prontas para aparecerem em nossas lembranças, consumindo-nos em lágrimas, às vezes.
Cada saudade tem um nome. Chama-se Maria (minha mãe), foi-se deste mundo devagarzinho, fazendo um tremendo esforço tentando segurar cada filho com as pontas dos dedos, não conseguiu. A morte é belamente mais forte. Chama-se Alexandre (meu irmão), também se foi. Não sei onde depositaram seu corpo, não importa mais, nem ele quer saber. Ele só gostaria de saber, isto é certo, se foi amado pelos seus. Ainda o é.
“A saudade é uma pessoa”. Tem o nome de Rosa, da cidade de Três Pontas MG, uma nobre mãe de família. É uma daquelas criaturas que nos faz dizer a nós mesmos: “só por conhecê-la já valeu a minha passagem neste mundo”. Tem o nome de Flauvinei, este plantou em meu peito a semente da simplicidade. Tem o nome de Juliana, Nicolas, Profª Lourdes, Rômulo, Ricardo, Patrícia... E por aí estende-se a lista.
Quando era garoto, gostava de ir ao Parque da Luz, na capital paulista, só para ver os velhinhos jogarem damas ou xadrez. À chegada da tarde, ficavam repletos os bancos de jogadores da terceira idade. O mais interessante era que os pombos também vinham aos bandos, como que sabiam que os velhinhos trariam muitas pipocas para alimentá-los enquanto esperavam a sua vez de jogar.
Num jogar de pipocas, num revoar de cãs embranquecidas pelo peso do tempo, o olhar de cada ancião se perdia no horizonte. Este lhes apresentava um deitar de sol belíssimo. O olhar daqueles parecia procurar alguém naquele céu meio azul e meio cinzento de fumaças dos automóveis. Aqueles jovens envelhecidos deviam ter tantas pessoas cravadas bem no íntimo de suas lembranças que, penso eu, a dor da saudade tirava suas forças ao jogar uma pedra e outra daqueles tabuleiros de damas e xadrez.
Há um filme estrelado por Tom Hanks chamado À espera de um milagre. Ele traduz bem o que é a dor de uma saudade. O chefe da prisão, Tom Hanks, recebe de um negro condenado à morte um dom: o dom de curar as pessoas e também de viver eternamente. Creio que o prisioneiro negro já não suportava aquele dom, pois viu seus amigos partirem todos, só ele permanecia neste mundo. Ainda mais numa prisão, sabia que não iria morrer na cadeira elétrica: tinha o dom. Enfim, consegue ele passar o dom ao policial chefe (Tom Hanks). Este o recebe. Por fim, tempo passa, parentes e amigos do policial vão-se morrendo, enquanto ele atravessa o tempo vendo-se só acompanhado de um rato (que também havia recebido o dom). Bom, o milagre que o policial esperava era a visita da morte, não havia sentido continuar carregando aquela dor da saudade eterna das pessoas que um dia amara no mundo.
“A saudade é uma pessoa”, é um fato, é um riso, é o primeiro beijo, é uma lágrima, é uma mãe, é uma flor e etc.
Viktor E. Frankl (médico e psiquiatra austríaco do século passado) em seu livro Em busca de sentido afirma que tudo que um dia vivemos será sempre real, permanecendo eternamente guardado em nosso subconsciente, é sempre presente, conclui. Schopenhauer, em suas obras Metafísica da Vida e Metafísica da morte, é enfático ao dizer que o tempo pode envelhecer tudo, menos as nossas lembranças. Ele exemplifica pedindo para que lembremos de algum fato ou brincadeira de nossa infância. Quando o fazemos, notamos que as imagens que recordamos estão lá do mesmo jeitinho, os rostos radiantes das crianças que brincávamos juntas, o rosto de nossas mães pedindo que viéssemos para casa, e tudo o mais. O tempo envelheceu a todos, menos nossas lembranças.
“A saudade é uma pessoa”. Cada recordação de pessoas que amei neste mundo está fincada em minh’alma como um forte cipreste de noite natalina. Cada uma delas é uma estrela singular, que, ao brilhar dentro de mim, faz-me verter lágrimas de saudades, às vezes.
Concluo com um poema do grande mestre e místico M.Tagore. (1861-1941)
Poema de despedida
É hora de partir meus irmãos, minhas irmãs.
Eu já devolvi as chaves da minha porta.
E desisto de qualquer direito à minha casa.
Fomos vizinhos durante muito tempo,
E recebi mais do que pude dar.
Agora, vai raiando o dia,
E a lâmpada que ilumina o meu canto escuro
Apagou-se.
Veio a intimação e estou pronto para a minha jornada.
Não indaguem sobre o que levo comigo.
Sigo de mãos vazias e o coração confiante.
Dica de livro aos amantes de poesia: Oferenda poética, M. Tagore
sexta-feira, 30 de outubro de 2009
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ainda nem li todo esse seu arquivo mais só o tema já me chamou atençao
ResponderExcluirsim realmente a saudade é uma pessoa e se chama WILSON!! rsrsrs isso é pra dizer que ... rsrsrsrs